Doutor Guillotin e a guilhotina

Doutor Guillotin e a guilhotina

Tempo de leitura: 14 minutos

Doutor Guillotin e a guilhotina. Ao contrário que muitos pensam ou no que você aprendeu na escola, o Doutor Guillotin não inventou a guilhotina e tampouco morreu guilhotinado.

Joseph Ignace Guillotin (1738-1814), médico, humanista, eleito pelo partido “Tiers État“ (Terceiro Estado) que defendia os interesses e direitos de toda a população que não faziam parte do Clero (Primeiro Estado), nem da Nobreza (Segundo Estado).

Retrato de Joseph Ignace Guillotin (1738-1814). Pintor e ano desconhecido. Museu Carnavalet.

Em 15 de maio de 1789, na recém criada Assembleia Nacional, o Doutor Guillotin participou ativamente dos debates da Constituinte fazendo propostas sobre a reforma do código penal sendo que uma delas exigia que as execuções de penas capitais fossem revistas, com o objetivo de humanizar as execuções e reduzir o máximo o sofrimento dos condenados.

Antes da Revolução Francesa (14 de julho de 1789), de acordo com a natureza do crime e a posição social, a pena e a forma de condenação variava: O nobre era decapitado com sabre; o plebeu com machado; o regicida (crime contra o rei) e o criminoso contra o país (Estado) eram esquartejados; o herege queimado; o ladrão era batido, torturado ou enforcado; o falsificador era fervido vivo em um caldeirão de água quente… E outras condenações bárbaras.

A proposta do Dr. Guillotin:

Doutor Guillotin, como membro da Assembleia Constituinte preocupado com a situação dos condenados fez em 1º de dezembro de 1789 um brilhante discurso em prol dos direitos dos homens, repletas de ideias humanitárias, racionais e principalmente igualitárias para todos os homens condenados ou não, pelo Estado. Como ele mesmo disse:

“La loi, dit-il, soit qu’elle punisse, soit qu’elle protège, doit être égale pour tous les citoyens, sans aucune exception”.

Tradução livre: “A lei, diz ela, que seja ela punida, que seja ela protegida, deve ser igual para todos os cidadãos, sem nenhuma exceção“.

De acordo com a verdade deste princípio, ele propôs o seguinte:

“Les délits du même genre seront punis du même genre de supplice, quels que soient le rang et l’état du
coupable; dans tous les cas où la loi prononcera la peine de mort, le supplice sera le même (décapitation), et l’exécution se fera par un simple mécanisme”.

Tradução Livre: “Crimes do mesmo tipo serão punidos com o mesmo tipo de punição, independentemente da posição e condição do culpado; em todos os casos em que a lei declarar a pena de morte, a punição será a mesma (decapitação) e a execução será por um simples mecanismo”.

Resumindo:Todo cidadão, independente da sua classe social, deverá ser julgado igual perante a lei, sem discriminação por posição social. A pena capital deverá ser igual para todos condenados, executado por um mecanismo (a ser projetado), para uma decapitação rápida, evitando erros para o executor da sentença, e longos sofrimentos para o condenado”.

O Doutor Guillotin com essa leis, queria evitar torturas desnecessárias dos condenados. De fato, era
frequente que a decapitação pela espada ou machado falhasse na primeira tentativa, sendo necessário dar vários golpes.

O carrasco Sanson:

Segundo Charles-Henri Sanson (1739-1806), carrasco principal da Revolução Francesa que participava das discussões na Assembleia, para ele cortar várias cabeças no mesmo dia era um trabalho árduo, cansativo e desgastante psicologicamente e, portanto, com possibilidade de se cometer erros.

Charles-Henri Sanson, o carrasco. Gravura de L. Massard.

Achava também que o uso continuo do material (machado, espadas…) se deteriorava facilmente. Portanto, concordava plenamente com o Doutor Guillotin, que a execução de um condenado por um “mecanismo simples” era a melhor maneira para finalizar bem sua laboriosa profissão.

Quando Charles-Henri Sanson faleceu em 1806, trazia em seu curriculum 2.918 decapitações, sendo que muitos foram personagens importantes da história da revolução: Luís XVI em 21 de janeiro de 1793; Charlotte Corday em 17 de julho de 1793; Maria Antonieta em 16 de outubro de 1793; Madame du Barry em 8 de dezembro de 1793; Danton em 5 de abril de 1794; Camille Desmoulins em 5 de abril de 1794; Robespierre em 28 de julho de 1794…

Seu filho Henri Sanson (1767-1840) durante muito tempo foi seu ajudante e depois titular da profissão, até falecer em 1840.

A saga da família continuou com Henry-Clément Sanson (1799-1889), neto de Charles-Henri e filho
de Henri-Clément. Foi o último descendente dessa dinastia de carrascos. Com sérios problemas psicológicos por causa da ingrata profissão herdada, não conseguia esconder sua angústia e depressões levando-o a procurar refúgio no álcool e outros vícios. Pediu demissão em 1847, ao último rei da França, Luís Filipe (1830-1848) e foi substituído por Charles-André Férey.

O trio dos pesquisadores:

A decisão ficou em suspense pelos membros da Assembleia, ocupados com assuntos mais importantes a serem debatidos, no momento que ocorriam manifestações populares em Paris, mas autorizaram o Doutor Guillotin e o Doutor Antoine Louis (1723-1792), secretário da Academia Real de Cirurgia a trabalharem juntos com o carrasco Charles-Henri Sanson para que pesquisassem o melhor mecanismo de execução, com menos custo para o Estado e que poupasse sofrimentos desnecessários ao condenado.

Projeto primitivo de T. Schmidt e Laquiante.

Entre os pensamentos políticos e filosóficos do Doutor Guillotin e as reflexões anatômicas do Doutor Antoine Louis e as questões práticas do carrasco Charles Sanson, nasceu a guilhotina.

Conclusão da Assembleia Nacional:

Em 3 de maio de 1791, o deputado Louis-Michel Le Peletier de Saint-Fargeau (1760-1793) pediu a Assembleia a abolição definitiva da pena de morte e das condenações nas galeras (navios de guerra ou mercantis).

Foi apoiado pelos abolicionistas e seus partidos: Voltaire, Malesherbes, Boucher d’Arcis, Mirabeau, Brissot, Pastoret, Robespierre, Vasselin, Adrien Duport, Jérôme Pétion, Condorcet e Padre Grégoire.

Em 1° em junho de 1791, apesar dos argumentos dos abolicionistas sobre inutilidade e o perigo da pena de morte, a Assembleia por uma maioria absoluta rejeitou a proposta, mas concordaram que a execução não deveria haver sofrimentos e decretaram que a pena de morte deveria ser somente uma simples privação de vida.

Em 3 de junho de 1791, o deputado Louis Michel Lepeletier de Saint-Fargeau decretou:

“Tout condamné à mort aura la tête tranchée” (“Todo condenad à morte terá a cabeça decepada” (Código civil, artigo 3 ). Quanto ao mecanismo de execução ficou para ser acrescentado mais tarde.

Em 6 de outubro de 1791 essa lei foi introduzido no Código Penal francês no artigo 12.

Antigas máquinas de cortar cabeças:

A guilhotina não foi uma invenção da Revolução e nem do Doutor Guillotin, mas foi provavelmente inspirada em gravuras de antigos textos e gravuras que ilustravam máquinas de cortar cabeças, (sem um nome específico) usadas em vários países da Europa, como: Itália, Alemanha, Inglaterra, Escócia.

Mesmo na França, de acordo com as “Memórias do Marquês de Puységur” (1751-1825), o marechal, Henri II de Montmorency (1595-1632), condenado a pena de morte pelo crime de lesa-majestade contra o rei Luís XIII (1610-1643) teria sido decapitado numa espécie de guilhotina antes do tempo. Composta por uma lamina de ferro cortante, solta do alto de uma estrutura de madeira.

Doutor Guillotin e a guilhotina
“Decapitação do duque de Montmorency em 30 de outobro de 1632, em Toulouse”.
Gravura realizada em 1840, por Thomas Allom (1804-1882).

Aviso técnico de Luís XVI:

Em 1792, o Doutor Antoine Louis auxiliado pelo Doutor Guillotin (que se encontrava em fim do seu mandato parlamentar) desenharam os primeiros rascunhos da futura guilhotina.

Segundo a lenda (embora seja contestada), os dois médicos apresentaram o desenho ao rei Luís XVI (1774-1792), em março de 1792 durante uma reunião no Palácio das Tulherias, pois parecia ansioso por conhecer o destino reservado ao seu povo.

Luís XVI, grande interessado em mecânica foi quem recomendou uma lâmina oblíqua (trapezoidal) em vez na forma de um arco (lua crescente), como previsto nos desenhos iniciais, (história também contestada).

Em 25 de março de 1792, o rei Luís XVI assinou a lei adotando o uso da “máquina de cortar cabeças” para os condenados de crimes contra o Estado. Ironicamente sofrerá os efeitos de seu próprio conselho técnico, em 21 de janeiro de 1793, menos de um ano depois.

Doutor Guillotin e a guilhotina
Luís XVI recebendo seu último sacramento do abade Henri Edgeworth de Firmont (1745-1807). Autor desconhecido.

Protótipo e testes:

Um 1° protótipo foi construído em abril de 1792, pelo artesão construtor de pianos, Jean-Tobias Schmidt (1768-1821), onde tinha sua oficina no 9 da Cour du Commerce Saint-André” (5° arrondissement), vizinho de dois personagens importantes da Revolução Francesa: Danton (guilhotinado em 5 de abril 1794) morava no n° 20 (edificio destruido com a construção do boulevard Saint-Germain), Marat (assassinado em 13 de julho de 1793), no n°8 onde tinha a redação e gráfica do seu jornal “L’Ami du Peuple“.

Doutor Guillotin e a guilhotina
Esboço da 1° guilhotina, de Tobias Schmidt, século XVII.

Foi na oficina de Jean-Tobias Schmidt que aconteceram os primeiros testes, supervisionados pelo Doutor Guillotin. Primeiramente a máquina cortou blocos de palha, depois ovelhas vivas.

Com o resultado satisfatório, precisando somente alguns reforços na estrutura e na inclinação da lâmina, o aparelho de decapitação sem nome, chamada formalmente entre os participantes do projeto de “máquina Schmidt“. Foi transportada para a prisão de Bicêtre (atual hospital), para testes em cadáveres de presos.

Em 17 de abril de 1792, depois da demonstração, pela facilidade de uso e eficiência, a “máquina corta cabeças” foi aprovado pelo Doutor Antoine Luis, Doutor Guillotin, os carrascos Charles-Henri Sanson e seu filho ajudante Henri Sanson (1767-1840), membros da Assembleia Nacional e por toda uma comunidade médica presente no momento.

Doutor Guillotin e a guilhotina
Guilhotina típica francesa. Arte de George Stuart Historical Figures.

Os primeiros executados:

O primeiro guilhotinado foi Nicolas Jacques Pelletier (ca. 1756-1792) condenado por roubo, assassinato de um homem, em 25 de abril de 1792. Guilhotinado na Praça de Greve, atual Praça de l’Hôtel de Ville (Prefeitura de Paris).

A multidão, que veio em grande número assistir a esse novo espetáculo ficou desapontada com a velocidade da execução e vaiaram o carrasco Charles-Henri Sanson. Alguns dias depois, na Place du Carrousel (atual Praça do Carrossel do Louvre) foi a vez de três soldados, Devire, Cachard e Desbrosses pelo assassinato de um vendedor de limonada que trabalhava no Palais Royal.

A “Gilete nacional” continuou a trabalhar por mais 185 anos. Eram execuções públicas até 29 de junho de 1939, depois passou a funcionar somente nos pátios de prisões e na presença de poucas autoridades e algumas testemunhas.

Os três últimos executados do século XX:

Christian Ranucci (1954-1976): Guilhotinado em 28 de julho de 1976, em Marselha. Condenado por sequestro e assassinato de menor.

Jérôme Henri Carrein (1941-1977): Guilhotinado em 23 de junho de 1977, em Douai, norte da França. Condenado por tentativa de estrupo e assassinato de menor.

E o último, Hamida Djandoubi (1949-1977), tunisiano. Guilhotinado, em 10 de setembro de 1977, em Marselha, por tortura e assassinato de uma mulher de 22 anos.

Doutor Guillotin e a guilhotina
Hamida Djandoubi, o último guilhotinado, em 10 de setembro de 1977. (Marselha). Foto: Gerard Fouet.

A guilhotina permaneceu como método oficial de execução até o dia em que a pena de morte foi abolida, em 09 de outubro de 1981, durante primeiro ano do mandato do presidente, François Mitterrand (1981-1995) que cumpriu uma promessa de campanha para se eleger.

A Patente:

No dia 5 de julho de 1792, o construtor Tobias Schmidt escreveu ao rei Luís XVI (antes de ser enviado para a prisão do Templo), uma petição, solicitando a patente da sua “máquina de decapitar”. Em 24 de julho, o Ministro do Interior, Champion de Villeneuve (1758-1844) deu a seguinte resposta a ele:

“Il (le roi) répugne à l’humanité d’accorder un brevet d’invention pour une découverte de cette espèce ; nous n’en sommes pas encore à un tel excès de barbarie. Si M. Schmidt a fait une invention utile dans un genre funeste, comme elle ne peut servir que pour l’exécution des jugements, c’est au gouvernement qu’il doit la proposer”.

Tradução livre: “É repugnante para a humanidade conceder uma patente de invenção para a descoberta desta espécie; ainda não alcançamos tanto excesso de barbárie. Se o Sr. Schmidt fez uma invenção útil do tipo fatal, uma vez que ele só pode servir para a execução de julgamentos, é ao governo que ele deve propor”.

Apelidos da “máquina de cortar cabeças”:

A “máquina (ou aparelho) de cortar cabeças” não foi chamada imediatamente de guilhotina. Teve antes vários outros nomes como:

  • Louisette ou Louison“, em homenagem ao Doutor Antoine Louis, que para alguns historiadores foi o verdadeiro inventor.
  • Moulin à silence(moinho do silêncio).
  • Cravate à Capet (gravata a Capeto).
  • Louis Capet (Luís Capeto) foi o apelido dado pelos revolucionários a Luís XVI, após a abolição da monarquia absoluta, em 21 de setembro de 1792. A dinastia Capetiana, iniciou-se com o rei dos Francos, Hugo Capeto (987-996), onde seus descentes restaram no poder por mais de 300 anos.
  • Veuve (viúva).
  • Bois de justice (madeira de justiça).
  • Raccourcissement patriotique (Encurtamento patriótico).
  • Rasoir national(Gilete nacional).
  • E finalmente, Guillotine (guilhotina), para o grande tristeza e desespero do Doutor Guillotin.

Um final amargo:

Diz a lenda que o Doutor Guillotin também foi executado por sua própria “máquina”, mas isso está
explicado por uma impressionante coincidência.

Durante o período do “Terror“ (decapitações em massa entre julho de 1793 a julho de 1794), um médico de Lyon, chamado J. M. V. Guillotin, sem parentesco com o Doutor Joseph Ignace Guillotin, foi guilhotinado e por isso talvez vincularam seu nome a esse erro universal.

Em 26 de março de 1814, o Doutor Guillotin morreu em casa no n° 333, da rua Saint-Honoré, (atual 209), por causas naturais (furúnculo no ombro esquerdo).

No dia do seu sepultamento no cemitério du Père-Lachaise (tumba que hoje se encontra desaparecida), seu amigo e colega, Doutor Edme-Claude Bourru (1741-1823), fez a seguinte oração fúnebre:

“Malheureusement pour notre confrère, sa motion philanthropique, qui fut accueillie et a donné lieu à un instrument auquel le vulgaire a appliqué son nom, lui a attiré beaucoup d’ennemis ; tant il est vrai qu’il est difficile de faire du bien aux hommes, sans qu’il en résulte pour soi quelques désagréments”.

Tradução livre: “Infelizmente para o nosso colega, seu movimento filantrópico, que foi aceito e deu origem a um instrumento ao qual o vulgar aplicou seu nome, lhe atraiu muitos inimigos; tanto é verdade que é difícil fazer o bem aos homens, sem que isso resulte para você, alguns aborrecimentos”.

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Foto da Capa: Imagem do jogo de vídeo “Assassin’s Creed Unity“, durante a Revolução Francesa.

Fontes:

  • Joseph Ignace Guillotin“, Wikipédia France.
  • “Guillotine”, Wikipédia France.
  •  “Le docteur Guillotin : épisode du régime de la Terreur”, de Alphonse Cordier, Biblioteca popular online Gallica.
  • “La guillotine et l’imaginaire de la Terreur”, de Daniel Arasse, (Ed. Flammarion, 1993). 

2 Comentários


  1. Interessante que não encontramos em nenhum museu da França um exemplar das guilhotinas usadas

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